Na virada do século 19 para o 20, em algum ano entre 1898 e 1904, o xeique Ibrahim El Said El Beltagi esperava um bebê de sua mulher, Fátima El Maligi. Ele liderava uma mesquita na região egípcia de El Senbellawein, a aproximadamente 100 quilômetros do Cairo.

Algo de paranormal, certo dia, aconteceu. O xeique deixou a esposa grávida e foi à mesquita aguardar a oração do alvorecer, salât al fajr. Tirou um cochilo ao esperar o cântico de chamado para a oração se iniciar, o adhân, quando teve um sonho-visão.

Nele, Umm Kulthum, filha do Profeta Muhammad, dava-lhe um presente. Mais tarde, após a reza, ele soube que sua esposa tinha dado à luz uma menina. Interpretando de forma profética o sonho, Ibrahim chamava a filha de Umm Kulthum, uma homenagem à experiência que teve com a figura religiosa. Apesar de registrada como Fátima, o mesmo nome materno, a menina ficaria mundialmente conhecida pelo apelido dado por seu pai.

Essa história é contada em jornais egípcios até hoje. Afinal, Umm Kulthum é provavelmente a mais célebre cantora do mundo árabe, conhecida como “A Voz do Egito”. Com uma data de nascimento incerta, Umm Kulthum se mudou para o Cairo nos anos 1920 para se dedicar à carreira. Foi na capital onde aprendeu sobre literatura francesa e árabe, preparando-se para a posição de símbolo cultural que ocuparia mais tarde. 

No meio literário e musical, Ahmed Rami foi um dos poetas egípcios que trabalhou com Umm Kulthum, escrevendo parte de suas letras. A cantora tinha uma pronúncia perfeita do árabe, dom adquirido na escola corânica, o que lhe permitia afirmar que levava um alto nível linguístico para as massas, que cantavam suas letras. 

“Eu apostei com amigos se haveria uma palavra em alguma música dela que nós não entendemos. Nunca aconteceu. Nenhuma palavra”, disse Amal Fahmy, famosa apresentadora de rádio no Egito, sobre a cantora. O depoimento foi dado no documentário de 1996, Umm Kulthum: A Voice Like Egypt, disponível no YouTube.

A artista aplicava o conhecimento de recitação religiosa ao cantar. Ela sabia como criar pausas, prolongamentos e climas com as notas musicais. 

“Na escola corânica de declamação, você aprende que nota prolongar, abreviar, como se faz, quando dar ênfases. Então ela levou todo esse estudo para o canto secular. Tinha uma força enorme. As pessoas se reconheciam naquilo, mesmo que ela não estivesse cantando coisas religiosas, aquele som era familiar e tinha um poder que era estudado há centenas de anos. Umm Kulthum tinha um virtuosismo acima da média. O estudo da influência dos sons sobre os seres humanos, feito na religião, não segue modas. E é por isso que afeta tanto os árabes até hoje, por esse repertório cultural”, afirma Marcia Dib, mestre em cultura árabe pela Universidade de São Paulo, professora e autora do livro “Música árabe – expressividade e sutileza” (2013).

Umm Kulthum começou a trabalhar sua voz ainda na infância, aprendendo a recitação corânica com seu pai. Para praticar os cânticos, o xeique Ibrahim vestia a filha de menino. Conforme crescia, Umm Kulthum foi deixando as vestes masculinas e assumindo ser mulher. Mas as discussões sobre gênero e sexualidade da cantora continuam ainda hoje, após 46 anos de sua morte. Uma das obras mais recentes que tratam do tema é o livro “A sexualidade de Umm Kulthum”, publicado em 2019 pelo escritor egípcio Mousa El Shadidi. O livro é uma das produções que investigam a bissexualidade da cantora.

“Com sua voz, ela foi capaz de fazer o que nenhum líder fez. Os árabes, do Golfo ao Oceano Atlântico, entorpeciam-se às dez horas da noite de todas as primeiras quintas-feiras do mês, quando Umm Kulthum cantava no mundo árabe. O silêncio reinava nas ruas e todos se ajoelhavam diante dos aparelhos de rádio – ritual que uniu os árabes em sua história moderna como nunca antes”, diz o prólogo do livro.

Sobre a fama da cantora, Dib cita um marco temporal importante: 1932. Aquele foi o ano do Congresso do Cairo e, na data, Umm Kulthum já era muito famosa.

“O evento propôs algumas medidas de ocidentalização da música árabe – a inclusão de instrumentos ocidentais, mudança nas afinações, o formato de grandes orquestras. Foi uma reunião de músicos do mundo inteiro para dar palpite sobre a música árabe, para criar uma música mais palatável aos ouvidos ocidentais. E ela foi acompanhando essas tendências”, conta a especialista. Apesar de não estar presente nas discussões para ocidentalização da música egípcia, Umm Kulthum cantou no evento e ficou conhecida por músicos de todo o mundo.

Naquela época, na década de 1930, o Egito era governado por uma monarquia alinhada com o Ocidente, o que impactava diretamente a cultura. Segundo os valores da época, ser moderno era ser ocidental, já que os monarcas eram afinados com a colonização britânica. 

A estética pela qual Umm Kulthum ficou conhecida tem muito desse primeiro momento: da cultura sob a dinastia Mohamed Ali (com os reis Fuad I, Faruk e Fuad II), apesar das mudanças que Gamal Abdel Nasser colocaria na cultura mais tarde, a partir de 1952. O líder nacionalista que tiraria a família real do poder em 1952 e instauraria o nacionalismo pan-arabista também mexeu no discurso artístico do país.

“Umm Kulthum teve sua própria orquestra e nunca cantou em cabarés nem em clubes noturnos, por conta da reputação feminina. Ela tinha uma personalidade muito, muito forte e uma autoria muito clara nas coisas. Ela sabia exatamente como ela queria a parte musical, dos arranjos, da orquestra. Não era uma tolinha sendo manipulada, pelo contrário. Ela chegou a ser presidente do sindicato, tinha uma projeção muito forte”, explica Dib.

Essa estética é a dos tailleurs que usava e das grandes orquestras. Sob a cultura da monarquia, Umm Kulthum tornou-se a artista favorita do rei e dos príncipes egípcios. Era a estrela de casamentos e eventos diplomáticos.

Entre outros temas, o destaque de Umm Kulthum era o amor. Hoje banalizadas, canções de amor eram solenes na época dos casamentos arranjados, quando o sentimento era tido como impossível de ser vivido. Além de cantado, o amor também foi um acontecimento que criou uma ruptura na vida pessoal e profissional da cantora: ela se apaixonou por um membro da família real.

Umm Kulthum tinha origem fellahi, camponesa. O romance não seria aceito pelos monarcas. “O que se diz é que ela se apaixonou pelo tio do rei Faruk e foi recíproco. Mas eles não puderam casar porque não queriam que um rei casasse com uma plebeia, muito menos de origem rural e, muito menos, artista. Foi uma cicatriz na vida dela. Isso a deixou muito magoada e deprimida”, explica Dib. A cantora se sentiu usada, como se fosse um objeto da realeza, mas não pudesse fazer parte da família.

A desilusão com a família real é tida como um dos fatores que a aproximaram de Gamal Abdel Nasser. “Mas Umm Kulthum já gostava do ideal nacionalista forte, tanto é que ela já  havia cantado no acampamento dos soldados no conflito entre Egito e Israel. Havia uma afinidade ideológica entre ela e Nasser. Ela foi acusada de ‘vira-casaca’ por trabalhar na monarquia e depois apoiar o Nasser, mas não é bem assim. O próprio sindicato que Umm Kulthum liderava queria sua saída após a mudança de opinião política, mas Nasser interveio, afirmando que já havia uma afinidade entre os dois”. 

É provável que sua intitulação como Voz da Nação tenha sido adquirida no governo de Nasser, na década de 1950. 

“Na época do Nasser, as mídias começaram a estar mais desenvolvidas, principalmente o rádio, e ele conseguiu gerar um sinal de rádio transnacional. Por isso, Umm Kulthum era ‘A Voz do Egito’, ou seja, ela projetava o ser egípcio pelo mundo árabe”, afirma Dib.

Nasser tinha um contato próximo com a cantora e não foi a única vez que apaziguou uma situação com Umm Kulthum. O líder nacionalista teve de mediar a produção da música Enta Omry (“Você é minha vida”), um clássico criado junto com Mohamed Abdel Wahab, astro das composições musicais do Egito. 
“Abdel Wahab não queria que ela interferisse na composição dele, e Umm Kulthum não queria que ele interferisse no canto dela”, explica Dib sobre a teimosia dos maiores nomes da música egípcia. Enta Omry, conhecida por todo o mundo árabe, levou dois anos para ser lançada por conta do impasse.

O amor romântico está presente nas duas fases de Umm Kulthum: no Egito cosmopolita e ocidentalizado e no nacionalista pan-arabista. “Na primeira fase, há um amor idealizado, meio ballet clássico. Na segunda fase, o romantismo fala mais de sentimentos reais, os ouvintes se reconhecem”, compara Dib. Mas, principalmente, a narrativa sobre ser A Voz do Egito mudou.

Na primeira fase, Umm Kulthum vivia sob as influências culturais ocidentais, como era o Egito naquela época – com muitas colônias europeias, não sendo a língua árabe de aprendizado obrigatório nas escolas. Na segunda fase, nacionalista, sua origem camponesa foi usada no discurso político, criando o mito da mulher interiorana que se tornou a voz nacional.

É difícil para um brasileiro entender quem é Umm Kulthum. Não há ninguém no nosso universo que se pareça com ela, porque não há nada que possa traduzir exatamente o que é “tarab“, palavra árabe que significa o êxtase causado por estímulos musicais. A especialista e professora Marcia Dib, de origem síria, conta que seus antepassados tinham uma “poltrona de ouvir música”. Na cultura árabe, escutar cantores como Umm Kulthum requer concentração e entrega. 

“Algumas pessoas vão fechar os olhos para ouvi-la melhor. Umm Kulthum tem uma carga sonora muito impressionante. É por isso que é tão difícil que dançarinas se apresentem em partes cantadas. É muito estímulo. A muqaddima [introdução musical sem letra], sim, é dançada frequentemente”, explica Dib.

Hoje, Umm Kulthum ainda vive nas rádios de todo o mundo árabe – apesar de sua morte em 1975 –, e no repertório de estudo da dança oriental, que se internacionalizou fortemente nas últimas décadas. Sendo uma personagem importante na história do mundo árabe contemporâneo, Umm Kulthum é atemporal e mítica, impossível de ser reduzida a fla-flus políticos.

Letícia Sé

Letícia Sé é jornalista e se dedica a temas do mundo árabe. É autora de Baulistanas, livro sobre a imigração de mulheres árabes ao Brasil. Em 2016, cobriu a Conferência da ONU Sobre Mudanças Climáticas no Marrocos, país onde também estudou a língua árabe. É criadora do blog SistemaMundo.com e compartilha conteúdos no Instagram @leticia.blog.

Assine nossa Newsletter