É difícil para nós, leitores contemporâneos, termos ideia do acontecimento que foi a difusão, na cultura europeia e estadunidense da segunda metade do século XIX e início do XX, de Rubaiyat, de Omar Khayyam, pela tradução do britânico Edward FitzGerald de 1859.

A saga desse manuscrito é fabulosamente contada por Amin Maalouf em Samarcanda, desde a sua criação na importante cidade comercial da Rota da Seda, no século XI, até a sua perda, no naufrágio do Titanic, em 1912. Mas, aqui, vamos falar de outros aspectos dessa coletânea de quadras, chamadas rubai (plural: rubaiyat), nas quais o polímata nascido em Nishapur (hoje Irã) celebra o vinho, as mulheres e outros prazeres da vida, enquanto enaltece Deus ao mesmo tempo que questiona a existência de qualquer divindade.

Muitos afirmam que o Rubaiyat inglês é uma recriação livre dos poemas originais do matemático e astrônomo persa do século XI, tanto que é comum grafar a autoria da obra como Khayyam-FitzGerald. E essa autoria dupla influenciou, inclusive, um dos maiores autores da língua portuguesa: Fernando Pessoa.

Em 1978, Alexandrino Severino apresentou no I Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, realizado no Porto, uma comunicação chamada “Rubaiyat, um poema desconhecido de Fernando Pessoa”. Severino mostrou um poema escrito pelo próprio Fernando Pessoa (ortônimo) que segue os moldes do rubai, publicado pelo autor português em 1926, na revista Contemporânea n. 3. Esse poema tinha até então passado despercebido pela crítica literária. Os versos do Rubaiyat de Pessoa são acompanhados pela imagem de uma rosa, entre o título e as quadras.

O fim do longo, inútil dia ensombra.
A mesma esperança que não deu se escombra.
Prolixa. . . A vida é um mendigo bêbado
Que estende a mão à sua própria sombra.

Dormimos o universo. A extensa massa
Da confusão das cousas nos enlaça.
Sonhos; e a ébria confluência humana
Vazia ecoa-se de raga em raça.

Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta.
Ora o vinho bebemos porque é festa,
Ora o vinho bebemos porque há dor.
Mas de um e de outro vinho nada resta.

Não cabe aqui fazer uma análise desses poemas com a obra de Khayyam, pois não sou gabaritada para isso, mas o que é importante destacar é como Pessoa se arriscou em escrever poemas nesse formato persa e a compatibilidade dos temas tratados em ambos os Rubaiyat: além do vinho, a efemeridade da vida (algo diz que Pessoa também pode ter sido influenciado por sua leitura de haicais japoneses).

No artigo de Márcia Manir Miguel Feitosa, “Uma leitura de Fernando Pessoa ‘ele mesmo’ à luz do Rubaiyat de Omar Khayyam”, considera-se que Pessoa foi o primeiro a introduzir a forma rubai na língua portuguesa. A autora também lembra que críticos como Jacinto do Prado Coelho e Eduardo Lourenço afirmam que esses versos trazem em si a ideia fundamental que percorre toda a obra poética de Fernando Pessoa.

No site da Casa Fernando Pessoa, é possível ver e baixar o Rubaiyat que pertenceu ao autor: uma reedição ou reimpressão de 1928 de uma edição de 1876, da editora Tauchnitz, de Leipzig, Alemanha. Portanto, Pessoa teve acesso aos poemas de Khayyam não no seu original persa, mas na tradução de FitzGerald, provavelmente quando se encontrava estudando na Durban High School, na África do Sul, em sua juventude. É possível, então, passear pelas páginas escaneadas do volume e ver como ele estava todo “rabiscado”.

Logo se vê que a marginália, como se chamam as anotações feitas nas margens das páginas, é uma tentativa de Pessoa de traduzir os versos de Khayyam-FitzGerald para o português. Ao todo, podemos contar duzentas traduções dessas quadras, que posteriormente foram reunidas em edições impressas. Uma delas se encontra no volume I da Edição crítica de Fernando Pessoa, coordenada por Ivo Castro, em que Maria Aliete Galhoz (autora da comunicação “Canções de beber na obra de Fernando Pessoa: rubai e rubaiyat na poesia ortónima”, apresentada no III Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, realizado em Lisboa, em 1985) transcreveu todas as intervenções manuscritas a lápis feitas pelo próprio Pessoa em seu exemplar.

Heterônimo de Khayyam

Termino este texto com uma bonita ideia trazida pela personagem Sarah do romance Bússola, de Mathias Enard (Todavia, 2018), que narra a história de encontros e desencontros de Sarah e Franz, dois orientalistas, em meio a uma citação sem fim de literatos, músicos e artistas e seus contatos entre os chamados Oriente e Ocidente. A ideia é a de que o Pessoa que escreveu o Rubaiyat poderia ser um heterônimo de Khayyam.

Em um determinado momento, Franz narra suas lembranças de uma noite de amor com Sarah, entremeadas pela presença de Khayyam e de seus versos, inclusive os de Pessoa.

“Sarah admitia facilmente que o que preferia em Khayyam era a introdução de Hedayat e os poemas de Pessoa; de bom grado reuniria os dois, fabricando um monstro muito bonito, um centauro ou uma esfinge, à sombra de Khayyam, com Sadeq Hedayat introduzindo as quadras de Pessoa. Pessoa também gostava de vinho,

[…]

e era pelo menos tão cético e desesperado quanto seu ancestral persa. Sarah me falava das tabernas de Lisboa onde Fernando Pessoa ia beber, ouvir música ou poesia, e, de fato, elas pareciam em seu relato com as merykhané iranianas, a tal ponto que Sarah acrescentava, irônica, que Pessoa era um heterônimo de Khayyam, que o poeta mais ocidental e mais atlântico da Europa era, na verdade, um avatar do deus Khayyam (…)”

Esse vaivém linguístico culminou em fevereiro de 2022 com a publicação no Irã da tradução para o persa dos Rubaiyat de Fernando Pessoa, numa edição bilingue persa-português, que ficou a cargo da Diretora do Centro de Iranologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Sepideh Radfar, e conta com a revisão poética do poeta iraniano Seyed Ali Salehi. O livro contém também um texto inédito do professor Fernando Cabral Martins, analisando a influência que a obra de Khayyam exerceu no imaginário de Fernando Pessoa nos últimos anos da sua vida (Se alguém conseguir me manda que eu quero muito ler!).

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Paula Carvalho

Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”

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