Para Warley Goulart

Dona Militana sabia mais de cem Romances de cor. Bem antes dela morrer eu a conheci no Teatro Brincante, numa noite de homenagem a Câmara Cascudo. Esperávamos para entrar no palco e eu a observava. Ela parecia ter escolhido com esmero a roupa para encontrar as pessoas de São Paulo: saia de domingo, blusa enfeitada de renda e… sapatos com cara de novos pela falta de uso. Nada à vontade, falava pouco, olhos baixos e respiração curta. No palco sentei-me ao lado dela, havia um semicírculo de cadeiras voltadas para um público enorme já super receptivo antes de tudo começar. Ela me segredou bem baixinho: “Não vou falar nada, nada mesmo”. Parecia intimidada demais.

Num dado momento foi apresentada por Antonio Nóbrega, com todos os superlativos a que tinha direito, como a grande cantadora tradicional de Natal, que guardava na memória uma infinidade de histórias cantadas, de uma beleza inigualável na sua voz poderosa.

Ela não se mexeu, continuou de olhos grudados no chão, repetindo tão baixo que só eu escutava: “Não vou cantar nada”.  Séria, solene, trancada. Parecia que não ia ter jeito. Nóbrega brincou, pediu, repediu. Nada. Silêncio constrangedor. Num tempo daqueles incontáveis, esperamos todos, a respiração suspensa.

De repente, não me lembro como foi, ela começou a cantar, balançando lentamente o corpo pra frente, de olhos fechados. O encanto foi se espreguiçando contente entre nós, em outros ares já.

E depois, o difícil foi conseguir que ela parasse de cantar, enredada que estava no poder das palavras que entoava, completamente senhora de sua arte. Não sei se ela se autointitulava contadora ou cantadora de histórias. Duvido. Sei de ouvir falar que costumava contar no quintal, de chinelos ou descalça, pra quem chegasse. Anos e anos a fio, tinha aprendido de tanto contar. Imagino o quanto aprendeu e estudou sua arte, prestando atenção nas coisas corriqueiras da vida, vivendo. E ela sabia – e como sabia – instalar aquela magia perfeita, única, por meio de sua voz verdadeira, simplesmente singular.

Penso: que ela se preparou a vida inteira, do seu jeito investigou e compreendeu sua arte, nos mínimos detalhes, com rigor, disciplina, amor, dedicação e uma consciência encoberta do bem que espalhava quando as pessoas, crianças e adultos, a escutavam.

Essa qualidade indefinível do contador de histórias se apresentava nela, na sua experiência indecifrável. Acumulada, conquistada e aperfeiçoada no seu dizer abençoado, em meio às outras lidas de mulher e mãe, trabalhadeira no cumprimento de tarefas cotidianas.

Penso: que ela vestiu a roupa mais especial que tinha, calçou até sapatos que lhe supliciavam os pés para honrar o povo desconhecido de São Paulo, que ela imaginava sei lá o que seria. Trouxe o melhor do seu melhor, assustou-se genuinamente diante daquelas luzes do teatro e daquele mundaréu de gente, precisou de muita coragem pra enfrentar os sustos que sua imaginação fabricava, paralisando seu gesto que no fundo era de amor, de vontade de nos presentear com seu bem mais precioso. Travessia feita, ali mesmo, resultou que era como se ela estivesse no quintal da sua casa. Poderia contar a noite inteira naquele instante. Fabulo? Pode ser.

Penso: que isso também pode acontecer cada vez que um contador de histórias de qualquer tempo e lugar – que vive sua arte no mais profundo de seu ser conhecido – , encontra um grupo de pessoas ali para escutar, no  sempre desconhecido agora de uma narração de contos.

Penso: que essa qualidade existe e não pode ser decifrada. Que não depende de curso, apostila, grau de conhecimento acadêmico ou livresco, de quantificações, reivindicações, modas ou estratégias de marketing. Ilusões.

Uma qualidade que existe e, como a lua, pode estar cheia, minguante, crescente ou nova. São os ciclos constantes de transformações ao longo das estações que a tornam soberana na noite da existência de cada contador.

Tantas vezes me perguntam como me tornei contadora de histórias. Tornei-me? Respondo à toa, sabendo que qualquer resposta nesse caso é tola.

Que eu me lembre, precisei de muitos anos, talvez mais de dez, desde que bem cedo foi se desenhando um propósito artístico e educativo na minha vida. Perguntando sobre o que de fato estava fazendo nas aulas de arte para crianças e adultos, que artista eu estava sendo, o que era a arte na minha vida, para um dia, um dia, contar uma história numa turma de adolescentes – eu tinha 27 anos – e fazer uma pergunta, uma só, que me levou pela mão a embrenhar-me pelas trilhas cruzadas dos contos universais. (Caminho sem volta em que me perco e reencontro até hoje. Atrás da mesma pergunta.)

Ainda naquele começo contei uma história num curso de verão na Inglaterra, parte do Mestrado em Teatro Educação que eu fazia na Universidade de Nova York, Nunca suei e sofri tanto, nem antes, nem depois desse dia. Não tinha a menor ideia do que estava fazendo, nem do que contei, só sei que repetia as palavras de um conto de Chaucer, Canterbury Tales, e que foi um desastre.

“Eu sou contadora de histórias e você também é”, me disse  uma colega de turma já de volta a Nova York. Era 1980 e eu nunca tinha ouvido falar que uma pessoa poderia ser uma contadora de histórias nem que essa arte se fazia em algum lugar do mundo, como arte, além dos muros das escolas e das bibliotecas infantis.

Penso: é como se eu tivesse sido reconhecida por essa minha colega, como se ela tivesse me dado um novelo cheio de nós para eu ir desencaroçando devagar, com paciência. Como será que a dona Militana recebeu esse novelo? Como será que cada contador recebeu o seu?

O modo de contar depende da qualidade da paciência de perguntar que vai se aperfeiçoando durante a vida do contador. Tanto faz diploma ou pé no chão. Tem contador popular chucro e tem contador cheio de títulos que é chucro também. Essa indefinível intenção e vontade de conhecer encontra seus professores nas esquinas, no canto de um pássaro, no trânsito, no andar dos jegues nas estradas empoeiradas, sobretudo nas histórias. Quem procura acha, ouvi dizer uma vez um sábio homem.

Quem não procura rapidamente “se acha”.

Penso: que existe uma organização dos saberes disponíveis em qualquer cultura, tradicional ou “traicional”, como a nossa. É como cada pessoa escolhe e coleciona o que quer aprender, isso é o que qualifica sua experiência. Se bem que nas culturas tradicionais, em geral, há um certo monitoramento da aprendizagem de qualquer arte ou ofício. Ninguém se autodenomina tecelão, ferreiro ou contador de histórias. É o reconhecimento da coletividade e, muitas vezes, o reconhecimento de uma pessoa mais velha que confere credibilidade  à sua ação.

A matriarca cigana vê todos os dias o pano bordado que a menininha deixa ao pé da sua porta. Depois de muitas vezes encontrar seu pano no mesmo lugar no dia seguinte, pegá-lo de volta, fazer outro e assim por diante, a menina sabe que seu trabalho está bom quando um dia o pano não está mais lá. A velha matriarca o recolheu, seu trabalho foi reconhecido. O avô ceramista examina mil potes feitos pelo neto até que um dia reconhece a obra-prima pela qual o neto é chamado por ele de mestre ceramista. O velho escuta histórias do menino pequeno e o manda de volta infinitas vezes para continuar se preparando até poder se tornar contador…

Hoje nada disso existe mais. Claro que não. E também, a pressa não deixa. E o que mais? A ignorância, as vaidades de todas as cores e credos, a preguiça, nossa, a enumeração seria tão tediosamente longa quanto inútil.

Penso: que mesmo na ausência do velho sábio das culturas ancestrais, o conhecimento e a sabedoria continuam disponíveis nos dias de hoje. E sempre. Agora somos nós que precisamos aprender a reconhecê-los. Disponíveis não quer dizer visíveis. Ler uma história num livro ou ouvi-la da boca de um contador não quer dizer que a reconhecemos ou que ela é imediatamente apreensível pelo nosso entendimento.

Penso: que é a aprendizagem desse reconhecimento que esculpe a qualidade da presença de um contador de histórias. Não acredito que existam regras nem leis reguladoras dessa aprendizagem, mas que ela é, em si mesma, fundamental, digo, a consciência de que ela é necessária sempre, até o fim da nossa vida.

Pode ser num curso? Pode. Pode se dar pela observação de tudo, inclusive de outros contadores? Pode. Lendo o que já se escreveu sobre a arte de contar histórias? Pode. Contando e prestando atenção na própria prática? Pode. Nada disso? Pode. Vai saber como a dona Militana aprendeu a contar. Mas não venham me dizer que ela já nasceu sabendo…

Por outro lado, pensando bem, todos nós já nascemos sabendo, o segredo é como a gente pode contar pra gente mesmo, ao longo da vida, o que a gente nasceu sabendo, que está em código, esperando para ser por nós traduzido, não sei se me entendem.

Penso: talvez aprender a contar histórias seja ir jogando fora, pacientemente, o que a gente acha que sabe. Traduzindo. E acima de tudo,  quem nos ensina são as crianças, os alunos, as pessoas que escutam nossas histórias. E as próprias histórias, nos encontros com a gente mesmo, com o mundo e com os outros todos.

Nesse momento atual de recrudescimento e sórdida convocação de todo tipo de bobagens, em que há desfiles cada vez mais impunemente descarados de reis nus, se ao menos os contadores de histórias pudessem ter um vislumbre da força das palavras bem ditas, que sonoramente bem emendadas como estão nas histórias, podem remendar mundos, segundo diz o Dan Yashinsky, grande amigo contador de histórias de Toronto… Só isso já poderia fazer frente aos cães que ladram enquanto a caravana passa.

Penso: que de algum modo, e essa é a parte boa da história, os cães ladrando as aberrações que assolam nosso país, de algum modo o barulho desses latidos acordou muitas pessoas que contam histórias, isoladas em suas ações e provocou uma espécie de união, um momento de juntos estarem (tomara!) para lutar e defender aquilo em que acreditam. Historicamente isso é bom porque traz à luz perguntas importantes, proferidas e discutidas por grupos que se formam em vários lugares do Brasil, feitas por pessoas que talvez nunca antes tenham se escutado.

“Tudo acontece para o bem”, é a frase do tio do rei em um conto clássico da Índia.

Penso: que o fato de se discutir questões importantes para o contador de histórias é para o bem de encontros e, se possível, de novas escutas, de questionamentos básicos. Para sacudir a poeira embolorada do velho que se instala das práticas dos contadores. Velho, sem nunca antes ter sido novo.

Penso: que os que nasceram na sociedade de mercado e acreditam que devem seguir suas imposições, bem, que continuem tratando seu trabalho como mercadoria e busquem seu lugar ao sol do sucesso. Sempre haverá pessoas querendo comprar sonhos, uai. Enquanto o céu não cair, tudo isso existe e tem seu lugar. Ninguém tem nada que criticar as escolhas das pessoas. E também é preciso ficar claro que a arte de contar histórias tem uma vida perene por dentro das contingências do mundo, sejam elas quais forem. Uma vez Ariano Suassuna disse que  daqui a cem anos ninguém vai saber quem foi Lady Gaga… Já o clássico Kalila e Dimna continua tendo traduções de geração em geração.

Penso: que é uma ilusão pensar que reivindicações trabalhistas, sindicalistas, associacionistas e outras obscureçam o caminho da arte de contar histórias no mundo de hoje. Tudo depende de como, com que intenção e quem faz essas reivindicações. Elas podem ajudar ou atrapalhar, nunca se sabe de antemão.

Mesmo que não estejamos vivendo no mundo da dona Militana, ela é uma inspiração, entre tantas outras, para quem souber escutar sua Arte. E a única forma  efetiva – penso – de estabelecermos um lugar digno para o contador de histórias hoje é… nos tornarmos bons narradores. E nos encontrarmos com bons narradores. É nossa arte que fala, não nossas palavras de ordem.

Na página 138 do livro A Ilíada, do Alessandro Baricco, li:

“Construir uma outra beleza, é talvez a única via para se encontrar uma paz verdadeira.”

Sobre isso eu gostaria de conversar com outros contadores de histórias, por exemplo.

Penso: que depois de mais de trinta anos contando, não posso dizer que sou contadora de histórias. Quero contar e perceber, a cada vez, que posso descobrir tantas coisas que ainda não sei.

Penso: que o fato de me tornar uma profissional não vai me transformar numa contadora melhor. Um número na carteirinha também não serve para abrir mundos que verdadeiramente me preencham de vida. Essa ilusória segurança vai me trazer o reconhecimento daquilo pelo qual seria reconhecida se de fato estivesse livre? Principalmente livre da busca de qualquer tipo de reconhecimento.

Penso: na liberdade de seguir o que as histórias me contam, pacientemente tentando me livrar do que penso que elas me contam, me preparando para aprender a escutá-las, me preparando para descobrir as vozes que existem dentro de mim, ainda tão desconhecidas, que em cada momento podem servir para honrar as histórias das mais diversas formas, e sobretudo, na liberdade de me sentir às vezes incapaz, de ter que recomeçar, de me submeter aos escuros das luas minguantes, aos silêncios das luas novas, em que nenhuma pergunta parece fazer sentido, em que minha voz soa tateando o nada, implorando por um grão de verdade nas areias e nas miragens desse deserto que muitos chamam de vida.

Há palavras que sei de cor desde que as li pela primeira vez e que me acompanham indeléveis, como essas de Henri Gougaud, no seu conto Yunus:

“Daquele dia em diante, Taptuk, o cego, não fez outra coisa a não ser buscar dentro de si mesmo o caminho que o levasse até a fonte silenciosa de onde se eleva a luz que torna todas as coisas simples.”

É uma outra Vida que busco e sei que não estou sozinha. 

Regina Machado

Regina Machado é professora, contadora de histórias brasileiras e diretora do festival Boca do Céu – Encontro Internacional de Contadores de Histórias. É autora de vários livros infantis, entre os quais “Nasrudin” (Companhia das Letrinhas, 2001).

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