Esta é a questão que paira na superfície do fluxo de consciência de Rachid, protagonista do recém-lançado romance árabe “E quem é Meryl Streep?” de autoria de Rachid Al-Daif e tradução de Felipe Benjamin. Primeiro livro do autor traduzido no Brasil, o escritor libanês é conhecido, no Mundo Árabe e nos países em que foi publicado, por suas obras polêmicas e por nomear seus protagonistas com seu próprio nome.

Homem vulgar em todos os sentidos, Rachid é um recém-casado que adquire um televisor com todos os canais via satélite disponíveis, a fim de agradar a esposa e mantê-la em casa. Contudo, isso não é suficiente para impedir que ela o deixe pouco tempo depois de casados. A saída de sua mulher de casa coloca Rachid num labirinto de lembranças e desconfianças que lhe conduzem a conclusões sobre sua vida antes e depois do casamento. Nessa reflexão ininterrupta, exceto por raros diálogos, testemunhamos o que pensa um típico cretino conservador sobre o papel da mulher na sociedade e o que ele espera de uma esposa tradicional. 

Desde o sofá do jovem recém-casado, temos cotejados o papel social da mulher americana na pele de Meryl Streep, em Kramer vs. Kramer (1979), e o papel da mulher árabe. Como se vê em  A cama, um lugar de confronto, Rachid – aqui autor e não personagem – coloca Ocidente e Oriente em combate no seu romance. A partir disso, engolimos em seco, numa overdose de violência, a representação de como a modernidade árabe tenta lidar com a liberdade sexual e a necessidade de um casamento tradicional, nem que seja para a manutenção das aparências. 

Como uma tópica em diversos romances árabes, sobretudo de escritoras mulheres, o autor traz à baila a ainda atual discussão da imagem forjada – tanto no Ocidente como nas sociedades árabes – de quem é a mulher árabe: a moça virgem, ou então a esposa submissa, associada às esferas da vida privada e a todos os deveres que lhe são impostos pela sociedade patriarcal.  

No romance em tela, o autor utiliza como principal artifício de crítica à sociedade as considerações que Rachid tem sobre sua esposa, da qual não sabemos sequer o nome, além de ser uma personagem com poucos turnos de fala. A jovem que se enquadraria, a princípio, no suposto “padrão de mulher árabe” é indiferente ao marido na cama, adora passar o dia todo na casa da mãe e, por vezes, decide pernoitar por lá, em vez de ir dormir em casa com o marido. Esses recorrentes “pernoites” na casa dos pais são o estopim para que Rachid compre uma tevê e usufrua de canais árabes e ocidentais.  

Por meio do aparelho televisor, esse sujeito se dá conta do processo de globalização que assalta o mundo, na década de 1990, e se assombra com a facilidade que há em se transportar de uma era a outra, de um país a outro, sendo exposto a línguas e culturas diferentes, tudo isso no controle de suas mãos. 

Zapeando, Rachid se depara com as cenas de Kramer vs. Kramer em que a personagem de Meryl Streep coloca o filho para dormir e sai de casa, após o retorno do marido. Sem entender uma só palavra do filme em língua inglesa, que não conta com o auxílio de legendas, Rachid fica completamente perdido e não consegue compreender com clareza o que se passa entre a atriz e o marido. 

A partir desse momento, seus pensamentos são uma torrente em direção às memórias e impressões pré-nupciais que tinha de sua esposa. Entretanto, sua análise desses fatos só prova que ele não é tão sagaz e experiente quanto ele e a maioria dos homens árabes se consideram. Nesse fluxo, o personagem censura a admiração que sua sogra nutre pela cantora Sabah e pela escritora Hanan Al-Shaykh – ambas personalidades libanesas consideradas libertárias e progressistas por ele –, e como isso poderia ter influenciado no caráter de sua esposa. 

Não obstante odiemos suas considerações asquerosas sobre as mulheres e testemunhemos sua violência no ato sexual com a esposa, não conseguimos frear a leitura, bem como o nojo que sentimos por esse sujeito, até que ele mesmo cesse, inesperadamente, seu fluxo de consciência.

Jemima Alves

Jemima Alves é doutoranda em Letras Estrangeiras e Tradução e mestre em Estudos Judaicos e Árabes (FFLCH-USP). Atualmente, a pesquisadora é membro do grupo Tarjama – Escola de Tradutores de Literatura Moderna (USP), tendo atuado também como intérprete árabe-português no contexto de refúgio no programa de voluntariado da Caritas – SP. Realizou parte da sua formação acadêmica em Portugal (Universidade de Évora) e em instituições em países árabes, como Marrocos (Ibn Battuta Arabic Scholarshipoferecida a alunos reconhecidos pela dedicação e excelência no estudo da Língua e Cultura Árabe), e Omã (Sultan Qaboos College for teaching Arabic language to non-native speakers).

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