Um autor pode depositar ironias nos narradores que cria. Mas estamos literais demais para entender isso.


Outro dia, vi no Instagram de uma amiga que ela está lendo “Le Dernier Ami”, romance lançado em 2004, do autor marroquino Tahar Ben Jelloun. Perguntei o que ela está achando do livro, que é o meu favorito da lista de leituras semestrais obrigatórias de quando estudava francês.

“Estou detestando”, escreveu ela. Gelei. Como ela poderia estar detestando? O livro mostra a diversidade étnica do Marrocos, a ditadura sanguinária do rei Hassan II nos anos 1960, os ideais de esquerda na juventude e a descoberta da sexualidade. Tudo isso pela lente de dois amigos marroquinos que crescem juntos e dividem suas experiências de vida.

“Os personagens são muito machistas”, escreveu minha amiga. Ao que respondi: “Mas isso não pode ser uma crítica do autor?”

Ela não me respondeu mais. Não sei o que houve, mas acho que estamos com um problema em distinguir autor e narrador. 

Falando em machismo, as cenas em que os garotos objetificam as meninas com as quais se relacionam não me marcaram tanto quanto o próprio fato de que, enquanto lia, tinha a sensação de Tahar Ben Jelloun estar me mostrando a hipocrisia da sociedade marroquina em manter certos pudores. Afinal, a juventude sempre dá seu jeito de namorar, mesmo que seja proibido. E, pela lente de dois jovens convencionais da época do romance, é óbvio que seriam machistas e grosseiros em muitas dessas cenas.

Nada num romance é por acaso. E não acho que Tahar Ben Jelloun, como um intelectual, não tenha o senso crítico de saber que aquelas cenas são machistas. Ele deve saber. Foi uma escolha sua criar aquelas cenas recheadas de objetificação ao falar das personagens secundárias femininas. E deve ter sido uma escolha de finalidade crítica.

Sinceramente, esses nem foram os trechos que mais marcaram minha leitura. Eu gostei muito do formato do romance, dividido em duas partes principais, e de conseguir enxergar aqueles dois narradores integralmente, com suas complexidades.

Essa discussão deve reaparecer com o lançamento da Tabla, E quem é Meryl Streep?, do libanês Rachid Al-Daif, com a tradução de Felipe Benjamin

No texto recentemente publicado neste blog, A cama, um lugar de confronto, Al-Daif se contradiz um pouco. No começo do artigo, ele afirma que seus personagens, homens machistas e mulheres livres, têm uma semelhança com o que ele vê na realidade atual do mundo árabe. Mas fecha o texto dando a entender que não se deve buscar representatividade nas personagens de suas obras.

Pelo que o tradutor me contou e como mostra a Tabla na sinopse de divulgação, o autor tem a mania de nomear como Rachid – seu próprio nome – os narradores de seus romances. O escritor já tentou se livrar das controvérsias que isso gera nos leitores e na crítica, já que seus narradores são geralmente machos escrotos.
Rachid Al-Daif dá vida ao conhecido boy lixo no romance E quem é Meryl Streep?. Estou ansiosa para ouvir este narrador e descobrir quais críticas Al-Daif faz sobre “Rachid” – seja lá quem ele for ou represente.

Letícia Sé

Letícia Sé é jornalista e se dedica a temas do mundo árabe. É autora de Baulistanas, livro sobre a imigração de mulheres árabes ao Brasil. Em 2016, cobriu a Conferência da ONU Sobre Mudanças Climáticas no Marrocos, país onde também estudou a língua árabe. É criadora do blog SistemaMundo.com e compartilha conteúdos no Instagram @leticia.blog.

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