No check-in do Aeroporto de Guarulhos, os funcionários folheiam minuciosamente os passaportes de quem vai ao Líbano. Querem conferir se não tem nenhum carimbo de Israel naquelas páginas. É um reforço à informação que já foi lida ao menos duas vezes: na compra da passagem e no site do Itamaraty.

“Os passaportes dos viajantes não poderão conter quaisquer registros de passagem por território israelense, sob pena de não poderem seus titulares ingressar em território libanês”, informa o portal do Ministério das Relações Exteriores brasileiro. A ansiedade provocada pela norma diminui quando o atendente brinca. Ele acha que minha bagagem está “muito leve”. E me aconselha, desconhecendo o motivo pelo qual vou ao Líbano: “Lá, você deve comprar outra mala de tanta coisa bonita que vai querer trazer. Tem uma loja, Eldorado, em que você encontra tudo, até uma mala nova”.

A viagem, com conexão no Catar, durou mais de vinte horas. Na segunda-feira, 11 de junho de 2018, fez muito calor em Beirute. “Por que não há muitas pessoas na rua?”, perguntei ao taxista Khalil. “Ramadã”, ele explicou.

Eu disse a Khalil que queria ir à praia. Ele me levou à avenida da orla de Beirute. Ficamos rodando, rodando, rodando. Ele começou a se irritar e me perguntar onde pararíamos. Eu queria um lugar para pôr o pé na areia, dar um mergulho. Mas esse lugar não existe, já que a praia em Beirute é privada. A faixa de areia é tomada por clubes e é preciso pagar para entrar. Depois de um tempo pesquisando sobre o mundo árabe, vi que muitos países têm praias privadas. E isso é muito estranho para uma brasileira.

No Ramadã, os muçulmanos se tornam notívagos. As ruas se enchem à noite. É o nono mês do calendário islâmico, em que o Alcorão foi revelado a Maomé. Os adultos saudáveis devem jejuar durante o período diurno, bem como orar com mais assiduidade e cuidar das palavras que dizem. O jejum, além de exercício espiritual e solidário àqueles que passam fome diariamente, é defendido pelos praticantes como benéfico para o corpo. A privação de alimentos é quebrada depois que o sol se põe. “Quem cumpre o Ramadã dorme durante o dia”, explicou Khalil, tragando um cigarro por volta das dez e quarenta e cinco da manhã.

Apesar dos princípios religiosos, parte da população de Beirute fumava, comia e continuava a frequentar cafés durante o dia. São muçulmanos não-praticantes ou não-muçulmanos. Os cristãos são aproximadamente metade da população libanesa, a segunda maior fé no país depois do islã, majoritária.

A importância das divisões religiosas no Líbano é política. O país é sectário e a participação governamental é dividida pelos grupos religiosos, resquício do colonialismo. O presidente sempre será cristão maronita, o primeiro ministro será muçulmano sunita e o presidente do parlamento, xiita. A religião é definida nos documentos de um libanês desde que nasce.

Na noite do dia 11, as ruas turísticas de Beirute se iluminaram. A comercial Rua Hamra tinha uma rede de pequenas lâmpadas brancas, presa entre os postes, formava um caminho de luz sobre os carros e pedestres. A decoração é exclusiva para os períodos de Ramadã e de Natal.

Entre consumidores e carros, crianças andam pelas calçadas. Seus passos são vigiados pelas mães, sentadas no meio-fio. Os pequenos pedem dinheiro, dizendo ter fome. Uma delas é Zeinab, menina de sete anos, magra, de cabelos escuros e olhos azuis redondos. Ela revela que sua mãe é síria e seu pai, libanês — portanto, ela também. E Zeinab nasceu no Líbano. Mas é tratada como síria pelos garçons dos cafés da Hamra, incomodados pela presença daquele pequeno corpo que senta à mesa dos clientes estrangeiros para pedir esmolas ou comida.

Na última noite do mês sagrado, eu entendi os mundos paralelos de Beirute. Há uma fratura muito explícita entre cidadãos e refugiados no país. As ruas principais da capital estavam cheias de libaneses que faziam compras, enquanto os campos de refugiados estavam cheios de famílias vivendo de caridade ou auxílio humanitário.

Descobri a loja que o atendente da companhia aérea, em Guarulhos, tinha me indicado a conhecer. Uma das filiais da loja Eldorado fica na Rua Hamra, região comercial por onde já tinha passado no começo da viagem, encontrando crianças refugiadas moradoras de rua. Na Eldorado, realmente se vende de tudo: roupas, brinquedos, louças, malas, tapetes. Estava lotada na noite do 14 de junho.

Outro cartão-postal, o Centro Histórico de Beirute, mostra um ímpeto por modernidade. Foi restaurado depois da Guerra Civil Libanesa, mas ainda tem monumentos esburacados pelas balas do conflito. Os prédios do século 19, de influência das arquiteturas europeia e islâmica, hoje abrigam shoppings de luxo. Uma loja da grife Christian Louboutin fica a algumas quadras das ruínas de uma sauna romana.

O dia 15 de junho era feriado nacional. O fim do Ramadã é uma festividade que pode se comparar ao natal para a cultura brasileira. Muitas famílias andavam pelo centro antigo. “Vê essas pessoas passeando? São refugiados sírios. O Centro é lindo, mas só libaneses muito ricos podem fazer compras por aqui”, disse-me Omar Musa*, jornalista palestino nascido na Síria.

Ele me convidou para ir na noite do dia 16 de junho em um bar comunista conhecido em Beirute, o Abu Elie, na Rua Kwait. A Copa do Mundo acontecia e em Beirute havia bandeiras do Brasil por toda parte, especialmente penduradas nas janelas dos carros. Querendo me explicar a paixão dos libaneses pela Seleção Brasileira, Omar me mostrou um documentário, Lebanon Wins the World Cup (Líbano Vence a Copa do Mundo), de 2015, que trata de como os jogos do Brasil na Copa de 1982 criavam tréguas na Guerra Civil Libanesa.

Encontrei Omar e seguimos para o Abu Elie. Ele convidara também sua amiga Mariam*, estudante da Universidade Americana de Beirute. Che Guevara estava colado nas paredes por toda parte, bem como bandeiras de Cuba e fotos dos revolucionários russos. O bar é escuro e pequeno demais. Uma mesa ao nosso lado é barulhenta.

Rapazes de camisa pólo e moças bem maquiadas dão risadas altas. Mariam reclamou que o perfil de consumidores do bar não era aquele, pois mudou nos últimos anos. Antes, era visto como um lugar escondido, proibido, que ainda se nota hoje pela portinha opaca do estabelecimento, que impede pedestres de enxergar o que acontece dentro. Hoje, Abu Elie aparentemente se tornou cool e isso irrita a estudante, que esperava que o teor subversivo do estabelecimento fosse mantido.

Depois de conhecer o bar, caminhamos pela Hamra. Uma mulher estaciona o carro de onde sai uma adolescente com nariz enfaixado. “O Líbano é o país que mais faz cirurgia plástica em jovens”, explicou Mariam. Já tinha visto garotas com uma tira branca sobre o nariz ou com os lábios inchados e perguntei à estudante de 22 anos sobre o cenário.

Pesquisando depois, descobri que o Líbano serve de colônia de férias para quem procura cirurgias estéticas no Oriente Médio. Uma matéria de 2010 da CNN chamou o país de “Meca” dos procedimentos estéticos, comparando as peregrinações religiosas para a Arábia Saudita com o turismo gerado pela vontade de modificações corporais.

Segundo a reportagem, as mulheres preferem passar pelas cirurgias em períodos de feriado para que possam descansar ou, simplesmente, para terem mais privacidade. A impressão acerca das diferentes realidades sociais no Líbano se tornava mais nítida. No dia 17 de junho, deixei Beirute, com São Paulo como destino. A última coisa que fiz na capital libanesa foi tomar um café assistindo ao jogo entre Brasil e Suíça. No estabelecimento lotado, os libaneses torciam pela seleção brasileira e clamavam a cada quase gol.

Em São Paulo, alguns dias depois da aterrissagem, visitei a Catedral Metropolitana Ortodoxa. O templo cristão fica ao lado de uma das saídas da Estação Paraíso do Metrô, na Rua Vergueiro, 1515. Nele, vi um Jesus diferente daquele publicizado pela tradição católica romana. O Messias pintado naquelas paredes tinha a pele morena, os cabelos pretos, bem como seus olhos.

Eu estava ali por saber que grande parte da comunidade árabe cristã na cidade é adepta da vertente ortodoxa do catolicismo. Além das imagens mostrarem Jesus e seus discípulos com aparência do Oriente Médio, palavras em árabe estão escritas ao redor deles. Ouvi a língua árabe ser falada na secretaria da Catedral e em árabe estava transliterado o pai nosso no livreto de cânticos da igreja.

Depois de conhecer o local, segui pela Vergueiro procurando algum lugar em que pudesse comprar uma garrafa de água. Parei em uma loja pequena, no número 2000 da mesma rua, quando percebi que em sua vitrine eram vendidos lanches árabes. A placa acima do caixa dizia “Al Hoda – Rei do Kibe – Culinária Libanesa”. Usei um dos poucos verbos que aprendi do árabe libanês para formular a frase: “eu quero uma esfiha”. A senhora que me atendeu, surpresa com o evento, perguntou-me se eu era libanesa, como ela.

Disse que não, mas contei que, alguns dias antes, estava no Líbano. E o diálogo se sucedeu.

— Onde você esteve no Líbano? 

— Beirute, Nabatiyeh, Qasmiyeh, Beqaa, Sidom… 

— Você conhece o Líbano mais que eu. Sou de Beirute.

Foi ela que decidiu por mim o recheio da esfiha que eu comeria em seguida: berinjela com grão de bico. Apesar de ter invisibilizado sua comunidade árabe ao chamá-la de “turca”, São Paulo não conseguiria apagá-la de sua história. Porque ali, ao comer esfiha em um encontro inesperado, revisitei Beirute. 

* Os nomes das pessoas citadas foram alterados

Letícia Sé

Letícia Sé é jornalista e se dedica a temas do mundo árabe. É autora de Baulistanas, livro sobre a imigração de mulheres árabes ao Brasil. Em 2016, cobriu a Conferência da ONU Sobre Mudanças Climáticas no Marrocos, país onde também estudou a língua árabe. É criadora do blog SistemaMundo.com e compartilha conteúdos no Instagram @leticia.blog.

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